“Paisagem-Corpo”: fragmento da série “Ascese”


Um lugar corporificado.

(Exposição “Olhares Distintos”, Projeto Cultura Pará 2006 (Landi: Cidade Viva) CVRD. Largo do Carmo, 2006)



Pintura “Paisagem-Corpo” (2005-2006)

Há um silêncio ao contemplar espaço ao qual estamos submersos. Uma comunicação sensível imposta pelas evidências do olhar. Labirinto abstrato, de formas e cores. Medida e silêncio exposto na contemplação secreta dos dias.
Assim surge o motivo que conduz a construção do trabalho “Paisagem-Corpo” uma simbiose entre vidente e visível, linguagem e silêncio, representação e abstracionismo. Secreta ligação da poética, em busca do espaço íntimo.
Se observarmos o conjunto de pinturas da esquerda para direita, veremos um panorama de significações distintas, mas que formam uma única obra. Uma placa “real” rompe o plano da pintura. Colocada em um espaço em branco da representação, as letras que percorrem sua base parecem descrever uma legenda secreta e ilegível. Consoantes e vogais seguem uma linha que nos remete a textos escritos. Todavia, não formam palavras e são expostas como metáfora de símbolos lingüísticos.
A placa que deveria informar não informa, é apenas uma alegoria de orientação sem sentido. Na mesma área, parte do suporte é exposta. É o início da representação de um ser composto de madeira, que é representado sobre madeira. O desenho de um anzol preso ao galho de uma árvore representa um símbolo de imersão, que “alça” o espectador em direção a pintura. Concebida por um conjunto de expressivas pinceladas, a copa de uma árvore surge como reprodução simbólica da paisagem citadina. A partir da visão múltipla e duvidosa, um labirinto espacial surge da harmonia entre o desenho e cor, criando uma ilusão de profundidade e volume. O artista Paul Cézanne é a fonte de onde surgem os estímulos para a interpretação da paisagem.
A estrutura do suporte é exposta pelos golpes de uma ferramenta de desbaste, referenciando os contornos da copa e do espaço submerso sobre as manchas. Um corte abstrato transpõe a copa e encerra a narrativa num indício correlato ao fragmento imagético, que é a experiência vivida durante a representação. Para Merleau-Ponty, “A pintura desperta, leva à sua última potência um delírio que é a visão mesma, pois ver é ter a distância, e a pintura estende essa bizarra posse a todos os aspectos do Ser, que devem de algum modo se fazer visíveis para entrar nela” (PONTY, 2004, p. 20, grifo do autor).
As dimensões (160x660cm) da pintura “Paisagem-Corpo” eram importantes, pois conduziam o espectador a uma distância imposta pela extensão da pintura. Para observá-la como um todo, um deslocamento espacial era necessário, o que conectava o espectador a um estímulo espacial perceptivo, acionando assim o corpo, que passa a ser incorporado simbolicamente ao mecanismo de apreensão.
Para Ponty, “o corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”. (PONTY, 1999, p. 273). A consciência de um deslocamento espacial pode representar os múltiplos pontos de vista em que o objeto pode ser apreendido, visto que, ao deslocar-me no espaço, posso representar de formas diferentes como, por exemplo, um objeto, que pode ser observado de diferentes formas, dependendendo da localização do observador.
Com isso, se não tivéssemos a consciência desse deslocamento espacial do corpo, não teríamos a percepção dos pontos utilizados para observar o mesmo objeto. Segundo Ponty, é necessária “a consciência de meu próprio movimento e de meu corpo como idêntico, através das fases desse movimento” (PONTY, 1999, p. 273).
Ao deslocar-me no espaço, nunca vejo um objeto de uma mesma forma. Minha visão do objeto é resultante desta fragmentação, ou seja, de enxergar o objeto sobre múltiplos pontos de vista. Sobre esta ótica, é conduzida a construção das pinturas “Paisagem-Corpo” e da série de gravuras “Arquitetura”, abordada no capítulo anterior.
Quando, no início do texto, descrevo ao leitor minhas impressões, procuro chamar a atenção sobre este ponto, de que a leitura do objeto artístico parte do contato direto com a obra e que a interlocução deste contato, mediada pelo texto, é apenas um dos pontos de vista.
Segundo David Hockney[1], “a inovação de Cézanne foi que ele incutiu nas imagens suas dúvidas sobre como os objetos se relacionam a si próprio, reconhecendo que os pontos de vista estão em fluxo, que sempre vemos as coisas de posições múltiplas, por vezes contraditórias. É uma visão humana, binocular (dois olhos, dois pontos de vista, daí a dúvida)”. (HOCKNEY, 2001, p.191).
Representar o conjunto de pinturas “Paisagem-Corpo” era uma tentativa de desencadear, na narrativa, um conjunto de gestos e ações simbólicas, que representassem esta necessidade de deslocamento na paisagem e que ela fosse compreendida como centro de um lugar. “Paisagem” é tudo o que observo e “lugar” é o resultado de uma interação com esta paisagem.
O conceito motor de “Paisagem-Corpo” é o conjunto de correspondências vividas. A unidade do objeto com o pensamento é a unidade do objeto com a experiência, vivida pelo corpo em seu deslocamento pelo espaço e em sua apreensão do objeto artístico. Sempre quando observamos objetos que trazem em seus conteúdos formais uma representação, nossa apreensão é deslocada a análise que surge de um jogo de partes. Por exemplo: A noção que temos de “árvore”; a noção da idéia de “árvore” particular; a noção de representação; noção de pintura; e a noção de cor. Juntas, estas noções, através de uma fórmula perceptiva, nos faz chegar à definição de alguma coisa. Para Merleau-Ponty, “só se sai do pensamento cego e simbólico percebendo o ser espacial singular que traz esses predicados em conjunto” (PONTY, 1999, p. 274).
Durante o contato direto, é que podemos chegar, através de uma análise reflexiva sobre os objetos, a uma definição objetiva e pessoal deles. Podemos nos livrar com isso de dois importantes dogmatismos acerca do objeto. Segundo Ponty, o primeiro é “afirmar que o objeto é em si ou absolutamente, sem perguntar-se o que ele é”. E o segundo “consiste em afirmar a significação presuntiva do objeto, sem perguntar-se como ela entra em nossa experiência” (PONTY, 1999, p. 275).
Somente através da experiência perceptiva é que podemos, segundo Merleau-Ponty, “penetrar na espessura do mundo”. O contato direto do corpo com os objetos é que constrói ali, neste exato instante, a idéia do objeto. Um momento vivido é que gera a aparência do objeto, de acordo com Ponty. “A coisa e o mundo me são dados com as partes de meu corpo (...) em uma conexão viva comparável, ou antes idêntica à que existe entre as partes de meu próprio corpo. A percepção exterior e a percepção do corpo próprio variam conjuntamente porque elas são as duas faces de um mesmo ato” (PONTY, 1999, p. 276).
O contato do corpo com o mundo é um reencontro. “Paisagem-Corpo” busca este reencontro, não apenas do “corpo-operante”, mas um vínculo do corpo ao espaço. A pintura é o olhar que nos conduz a distância, para podermos observar um conjunto.
Até aqui descrevemos as implicações intelectuais que geraram a pintura. Sua instalação no espaço deveria seguir estas orientações intelectuais. Na exposição referente ao projeto Cultura Pará 2006 “Landi: Cidade Viva”, promovido pela Companhia Vale do Rio Doce, um grupo de artistas foi chamado a intervir num casarão projetado pelo arquiteto italiano Antônio Landi. Na primeira visita que fizemos ao casarão, pude perceber que este espaço poderia ser o veículo final para a apresentação de “Paisagem-Corpo”. O contato com o lugar e o motivo da exposição davam as condições necessárias para desencadear as idéias gerais da obra. Os vínculos ao espaço arquitetônico serviram como o motor do próprio deslocamento espacial do corpo.
 As pinturas foram produzidas de maneira que não precisassem de chassis, o que fazia com que elas, ao serem instaladas no espaço, fossem realmente conectadas à sua estrutura arquitetônica. Outro aspecto importante desta instalação era o fato de que a última parte da pintura foi cortada para ser encaixada no canto da sala, criando um “L”, seguindo a estrutura da mesma.

 
Montagem da  obra “Paisagem-Corpo” no espaço da exposição “Olhares Distintos”.

O deslocamento e corte da pintura re-significando sua estrutura ao espaço foram ações que iniciaram um conjunto de outras ações que desencadeariam o conceito de paisagem e de corpo como um todo: atos como fixar a pintura direto à parede; preencher o vidro da sacada com um círculo gráfico conectando o espaço externo ao interno da casa; a ação de desnudar-me e andar pelo espaço onde ocorreu a instalação; e abandonar a pintura após o término da exposição, não sabendo qual destino que ela iria tomar para que fosse deteriorada junto ao próprio espaço ao qual foi incorporada, foram atitudes para que encerrasse o conceito final do trabalho.
O contato do corpo com o mundo é um reencontro. Para mim, a leitura da segunda parte da obra de Ponty “A Fenomenologia da Percepção” foi um combustível intelectual significativo e, como Merleau-Ponty encerra a introdução do capítulo O Mundo Percebido, “se percebemos com nosso corpo, o corpo é um eu natural e como que o sujeito da percepção” (PONTY, 1999, p. 278). 


 Registro da Ação “Paisagem-Corpo” na exposição “Olhares Distintos”.



 


[1] O livro “O Conhecimento Secreto Por David Hockney” apresenta uma tese que, a partir do inicio do século XV, muitos artistas ocidentais se utilizaram da óptica, a partir do uso de espelhos e lentes ou dos dois em conjunto, para criar reproduções fieis. E que alguns destes artistas usavam essas imagens projetadas diretamente para produzir desenhos e pinturas. (HOCKNEY, 2001, p. 12).




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