Um caderno de notas


A narrativa dos espaços de intimidade: Deslocamentos espaciais do interior ao exterior do espaço habitado.
(Paisagens Visíveis, I Encontro de Arte Contemporânea de Belém - Memorial dos Povos/PA, 2004.)




(detalhe)











 Páginas da obra “Caderno de notas” (2004). Desenhos e colagens.

Compus um caderno de notas de deslocamentos espaciais, que partiram de meu quarto em direção a rua, representados por desenhos e colagem entre o interior e o exterior de minha casa, onde a representação de portas e janelas simulariam passagens entre o interior e o exterior.
A casa agora era representada por desenhos que buscavam revelar fragmentos da arquitetura e dos objetos que estavam contidos nela. Os devaneios sobre o espaço habitado aumentavam a partir do momento que representava este pequenos vestígios sobre o cotidiano. A idéia ancestral do espaço habitado como lugar de abrigo era representado nas nuvens negras que encobriam os céu nos dias de chuva. Outro ponto importante destas representações é que elas transmitiam uma espécie de dialética entre o interior e o exterior. As pesquisas sobre este espaço coletivo, que é a casa, me conduziram às reflexões que traziam a noção de coletividade e de natureza como pontos de interesse.
O microcosmo psicológico de alguns eventos íntimos passaram a ser investigados, como exemplo o desenho “Porta Vagina”, que contém uma ampla figura metafórica, inspirado pelas obras de Gustav Courbet (“A Origem do Mundo”,1866) e Duchamp (“Etant Donnés: 1º. A queda d’água, 2º O gás de iluminação”, 1947-1966).



“Etant Donnés: 1º. A queda d’água, 2º O gás de iluminação” (1947-1966), de Duchamp


O interessante é que estes cadernos de notas se tornaram um diário visual de acontecimentos ocorridos no interior da casa. Neste momento, há um mergulho em questões e reflexões existenciais e as palavras surgem como um novo caminho para a experimentação. As letras-set começam a ser fixadas ao corpo dos desenhos, buscando uma relação gráfica com os mesmos.
Para Bachelard[1], a casa é um abrigo de devaneios poéticos e seus espaços podem ser compreendidos a partir de uma percepção espacial-orgânica, na qual cada canto e elemento que constitui a casa pode ser interpretado e re-significado a partir dos fenômenos ocorridos nestes espaços, compondo assim um corpo de reflexões psico-geográficas. Para mim, era necessário expressar como habitava este espaço vital, o que ocorria em seu dia-a-dia e como essas impressões poderiam ser transformadas em desenhos e de que forma seus objetos me atingiam. Segundo Bachelard, “A casa é o nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos em toda a acepção do termo” (BACHELARD, 2003, p. 24).

Joseph Beuys, “I like America and America likes me”
Ação na galeria René Block, 21-25 de Maio, 
1974. Fotografia de Caroline Tisdall
.(BORER, 2001 p.19)
             

As reflexões espaciais me conduziram a profunda análise de meu próprio espaço existencial, ao cerne de onde as imagens se irradiavam e revelaram os valores dos espaços habitados. Ao mesmo tempo que produzia artefatos artísticos, encontrava mecanismos de auto-compreensão.
Aqui minha produção se aproxima das idéias de Joseph Beuys, que usa a arte como elemento “xamânico”, ou seja, como cura e autoconhecimento. “O homem deve encontrar e realizar seu próprio caminho criativo” (BEUYS apud BORER, 2001, p. 23). De 21 a 25 de maio de 1974, Beuys realiza uma importante ação, “I Like America and America Likes Me” (Eu gosto da América e a América gosta de mim), em que consegue coabitar com um coiote vivo, se utilizando apenas de um cajado e um manto de feltro. Segundo o crítico Alain Borer:
Ele o fez, sem dúvida, para mobilizar energias profundamente arraigadas, para reduzir o abismo que separa a cidade moderna do estado de natureza, colocando em oposição o saber da população indígena dizimada (para a qual o coiote era um símbolo divino de harmonia) e a atual América dos colonizadores (BORER, 2001, p. 23).

O estado de natureza ao qual Borer se refere, constituiria a natureza como um importante objeto de estudo. Creio que a natureza seja fonte de fenômenos naturais incríveis e que devemos estar atentos às suas manifestações, pois estas se constituem como uma poderosa fonte de aprendizado. Por meio de suas ações, Beuys procurava alertar e curar as ameaças que pairavam sobre a saúde humana e estas não estavam apenas centradas no homem, mas “a questão da sobrevivência da humanidade ultrapassa o problema da saúde humana e refere-se à saúde de todo o planeta Terra” (BEUYS apud BORER, 2001, p. 26).
Em 1950, Beuys entra em contato com a obra de Paracelso, alquimista suíço do século XVI. Sua teoria médica procurava desenvolver uma conexão entre partes do corpo e do universo, microcosmos e macrocosmos. Beuys passa a ter a ecologia como um dos pontos centrais de sua produção artística, pelo fato de que seu processo de cura deveria progredir ao núcleo de todo o organismo social. Através de suas ações, ele procura despertar as pessoas para que possam não apenas utilizar seus cinco sentidos, mas também os sentidos térmicos, cinéticos, estáticos, espacial, temporal, vital. Seu desejo era “provocar a energia das pessoas e conduzi-las a uma discussão geral sobre os problemas presentes”. Seus meios para conduzir as pessoas para tal reflexão era desencadeado em suas ações. (BORER, 2001, p. 26).
Um dos aspectos que posso destacar como uma importante influência para a construção de alguns objetos e ações que realizaria a seguir, era a maneira como Beuys se utilizava da matéria que compunha seus artefatos artísticos como, por exemplo, a gordura, que era um elemento de presença constante em suas obras. Beuys utiliza a matéria como fonte de metáfora temporal, significativa, não apenas como elemento formal e sim pertinente ao conceito.
Segundo Beuys, “a natureza de minhas esculturas não é imutável e definitiva. Várias operações se dão na maior parte delas: reações químicas, fermentações, mudanças de cor, degradação, ressecamento. Tudo está em estado de mudança” (BEUYS apud BORER, 2001, p. 26).
Com isso, podemos concluir que seus trabalhos são constituídos de elementos que carregam em sua natureza forte fonte de significação e se apresentam como resíduos matéricos de suas operações mentais e de suas ações. A série “Dias de Chuva” e o trabalho “Imensidão Íntima” estão conectados a esses conceitos anunciados por Beuys.





[1] Idéia retirada dos capítulos 1, 2, 3, 6, 8 e 9 do livro A Poética do Espaço.




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